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Menininha


Pai, meu Pai, veja

Sei que não me escutas bem

Se escutas não entendes

A idade roubou-te a saúde

A clareza das ideias se foi

Junto à força e falo

Não sou mais sua menininha

Ah quem me dera ainda usar tua guia

Buscavas-me na escola e direto para casa

Fez mamãe me ensinar a coser, lavar e passar

Cortar com a faca da cozinha a carne em bifes como gostas

Era tudo seguro, previsível, familiar

As roupas que me fazias usar

Cobrindo abaixo do joelho desde cedo

Não corria sem camisetinha no parque

Nem pulava nuazinha na piscina

Tu me protegias desde sempre do mundo

Frio, hostil, perverso, o mundo

Você foi meu mundo e eu era toda tua só tua

Não precisava escolher, o caminho tu apontavas

Não precisava ser, era teu corpo e alma

Adoeceste e casei com teu igual

Homem bravo, ciumento, possessivo

Frio, hostil, perverso

O mundo

Tu eras meu mundo e finalmente me possuiu por completo

Em corpo de marido tiraste o cinto que me colocara

A coleira ficou. Tu eras meu guia

Frio, hostil, perverso

Pai, veja

Tentaste mas não me sufocaste

Apesar dos nossos esforços, da minha anuência

Não mataste meus desejos nem vontade de trair

Transgredir teu corpo que pesava sobre o meu

Sei que é mais fácil subjugar-me à tua coleira

Mas meu ventre não submete-se a mim

Seguindo a luxúria e o sangue descobri

Um mundo para o qual não me preparaste

Um mundo quente, úmido, gostoso

Mais que tudo, um mundo enorme, assustador

Não sei ler as pessoas, o que querem de mim

Não sei ser sozinha, ver e ouvir as ruas

O meu desejo superou o medo, mas para vivê-lo

Ah, para vivê-lo preciso destruir a tentação de voltar a ti

Libertar-me de ti por completo, em definitivo

Veja Pai, a faca da cozinha, lembra dela?

Exigiste que eu aprendesse a usá-la

Para cortar a carne e aprendi bem

Devagar, é minha vez de penetrar-te

A faca fria, hostil, perversa

28/06/14

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